segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Garrincha: A Alegria do Povo II

Peço emprestado o título do Yazalde que já de si emprestado era. É o melhor que temos para o lembrar, 25 anos após a sua morte.

O meu contributo não vai em video mas em prosa. Mais concretamente transcrevo-vos dois trechos da magnífica obra de Ruy Castro «Estrela Solitária - um brasileiro chamado Garrincha»


No primeiro, a situação passa-se no Mundial de 1958, onde o Brasil defrontou, na cidade de Gotemburgo, a temida URSS em jogo decisivo. Ganhou por dois a zero mas pareceram muitos mais.


«”Monsieur Guigue, gendarme nas horas vagas, ordena o começo da partida. Didi centra rápido para a direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetov cai e fica sendo o primeiro João* da Copa do Mundo: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio levanta-se. Kuznetov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijveski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a perna. Puxa a bola para cá, para lá e sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama, Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Iashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A plateia delira. Garrincha volta para o meio do campo, sempre desengonçado. Agora é aplaudido.
A torcida fica de pé outra vez. Garrincha avança com a bola. João Kuznetov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. (…). Vavá a Didi, a Garrincha, outra vez a Pele, Pele chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Iashin tem a camisola empapada de suor, como se já jogasse há várias horas. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exactamente aos três minutos.”

Foi assim que o repórter Ney Bianchi reproduziu em Manchete Desportiva aquele começo de jogo, como se tivesse um olho na bola outro no cronómetro. Mas não estava longe da verdade. Outro jornalista, Gabriel Hannot, diria que aqueles foram os maiores três minutos da história do futebol (…).
E ainda faltavam 87 minutos para o jogo acabar! A continuar daquele jeito, já havia russos contemplando uma temporada na Sibéria. Nunca o orgulho do “científico” futebol soviético fora tão desmoralizado, e pelo mais improvável dos seres: um camponês brasileiro, mestiço, franzino, estrábico e com as pernas absurdamente tortas. (…).
Garrincha nascia ali, não apenas para o mundo, mas para o próprio Brasil. (…)
Sua única frase, que resumia tudo o que sentia, era: “Eu tava com fome de bola”


* João era o nome que, dizia-se, Garrincha dava a todos os seus adversários de marcação directa.

Sem comentários: